Por que somos contra a propriedade intelectual?
Enquanto a publica\xE7\xE3o aberta \xE9 uma caracter\xEDstica bastante conhecida do site do Centro de M\xEDdia Independente [1] (CMI), a id\xE9ia irm\xE3, de “copyleft”, de subvers\xE3o dos direitos autorais, \xE9 ainda muito pouco conhecida e discutida. No rodap\xE9 do site, ao inv\xE9s da tradicional nota lembrando os direitos autorais, lemos o seguinte: “(c) Copyleft Centro de M\xEDdia Independente. \xC9 livre a reprodu\xE7\xE3o para fins n\xE3o comerciais, desde que o/a autor/autora e a fonte sejam citados e esta nota seja inclu\xEDda.” Ao inv\xE9s de restringir a divulga\xE7\xE3o, a nota de “copyleft” (um trocadilho com “copyright”), permite e mesmo estimula a distribui\xE7\xE3o posterior da informa\xE7\xE3o que o site veicula. Essa pol\xEDtica de “copyleft” faz parte de um movimento amplo de oposi\xE7\xE3o aos direitos de propriedade intelectual. [2]
\xCDndice
COPYRIGHT
Embora nossa sociedade tenha assistido um longo debate sobre a propriedade privada nos \xFAltimos dois s\xE9culos, pouco ainda foi dito sobre o car\xE1ter peculiar desse estranho tipo de propriedade que \xE9 a propriedade intelectual. Em geral, a propriedade \xE9 justificada como uma garantia de uso e disposi\xE7\xE3o do/da propriet\xE1rio/propriet\xE1ria \xE0quilo que lhe \xE9 de direito (por heran\xE7a ou por trabalho). Em outras palavras, algu\xE9m que adquiriu uma propriedade est\xE1 garantindo para si a utiliza\xE7\xE3o de um bem – e est\xE1 tendo essa garantia porque fez por merecer. Se algu\xE9m possui uma casa, por exemplo, a propriedade privada dessa casa garante ao/\xE0 dono/dona o acesso a ela quando bem entender e sua utiliza\xE7\xE3o para os fins que escolher (al\xE9m de poder disp\xF4-la – vend\xEA-la, emprest\xE1-la, etc. – se desejar). Se essa casa fosse compartilhada com outras pessoas, no momento em que essas outras pessoas a estivessem utilizando, ele/ela estaria privado daquela casa que fez por merecer. Quando uma pessoa utiliza a casa, a outra n\xE3o consegue utiliz\xE1-la (pelo menos n\xE3o na sua totalidade). Isso vale para todos os tipos de bens materiais.
Mas o caso da propriedade intelectual \xE9 diferente e seus te\xF3ricos sabiam disso desde o princ\xEDpio. A legisla\xE7\xE3o sobre a propriedade intelectual tem origem na Inglaterra, numa lei de 1710, mas foi nos Estados Unidos que ela foi teorizada e consolidada pelos “pais fundadores”. Esses homens que fundaram a rep\xFAblica americana e escreveram a constitui\xE7\xE3o sabiam que a propriedade intelectual era diferente da propriedade material. Eles sabiam que can\xE7\xF5es, poemas, inven\xE7\xF5es e id\xE9ias n\xE3o t\xEAm a mesma natureza dos objetos materiais que eram garantidos pelas leis de prote\xE7\xE3o \xE0 propriedade. Se quando eu uso uma bicicleta, a outra pessoa \xE9 privada do seu uso (porque, a princ\xEDpio, duas pessoas n\xE3o podem usar a mesma bicicleta ao mesmo tempo – principalmente se v\xE3o para lugares diferentes), quando eu leio um poema, a coisa \xE9 diferente. Eu posso ler o poema ao mesmo tempo que o “dono” do poema e meu ato de ler n\xE3o apenas n\xE3o priva, como n\xE3o atrapalha em nada a leitura dele. Thomas Jefferson, um dos pais fundadores e um dos primeiros respons\xE1veis pelo escrit\xF3rio de patentes dos Estados Unidos discutiu isso numa carta famosa que, \xE0 certa altura, diz:
“Se a natureza produziu uma coisa menos sucet\xEDvel de propriedade exclusiva que todas as outras, essa coisa \xE9 a a\xE7\xE3o do poder de pensar que chamamos de id\xE9ia, que um indiv\xEDduo pode possuir com exclusividade apenas se mant\xE9m para si mesmo. Mas, no momento em que a divulga, ela \xE9 for\xE7osamente possu\xEDda por todo mundo e aquele que a recebe n\xE3o consegue se desembara\xE7ar dela. Seu car\xE1ter peculiar tamb\xE9m \xE9 que ningu\xE9m a possui de menos, porque todos os outros a possuem integralmente. Aquele que recebe uma id\xE9ia de mim, recebe instru\xE7\xE3o para si sem que haja diminui\xE7\xE3o da minha, da mesma forma que quem acende um lampi\xE3o no meu, recebe luz sem que a minha seja apagada.” [3]
Dessa forma, n\xE3o parecia haver motivo para se transformar id\xE9ias (e can\xE7\xF5es, livros e inven\xE7\xF5es) em propriedade. No entanto, o mesmo Thomas Jefferson lembra da necessidade de se estimular a cria\xE7\xE3o de inven\xE7\xF5es “para o bem do p\xFAblico” e esse est\xEDmulo – para ele – s\xF3 poderia ser a recompensa (com bens materiais) ao “criador”. As id\xE9ias, justamente porque t\xEAm a caracter\xEDstica de uma vez expressas serem assimiladas por todos que a recebem, devem ser especialmente protegidas, para que os criadores de id\xE9ias n\xE3o fiquem desistimulados de cri\xE1-las e express\xE1-las. Aquele que cria a id\xE9ia deve ter o direito sobre ela, de forma que toda a vez que algu\xE9m a utilize ou a receba, ele tenha uma recompensa material. O autor de um livro deve receber os direitos autorais pela publica\xE7\xE3o e o inventor, o direito pelo uso da patente. Assim, diz a constitui\xE7\xE3o americana: "O Congresso deve ter o poder de promover o progresso das ci\xEAncias e das artes \xFAteis assegurando aos autores e inventores, por um per\xEDodo limitado, o direito exclusivo aos seus escritos e descobertas." [4] Com o direito exclusivo \xE0s suas cria\xE7\xF5es, os autores e inventores podem explorar comercialmente as suas id\xE9ias e conseguir a justa recompensa pelo seu esfor\xE7o e talento. A recompensa \xE9 o est\xEDmulo para que o criador produza ainda mais e a sociedade progrida em dire\xE7\xE3o ao bem comum.
Mas esse mesmo bem comum pode ser amea\xE7ado pela prote\xE7\xE3o excessiva \xE0 propriedade das id\xE9ias. Se se cria muitos entraves, ent\xE3o, pode-se impedir, ao inv\xE9s de promover a “instru\xE7\xE3o m\xFAtua e a melhoria das condi\xE7\xF5es”. Partindo de sua experi\xEAncia no escrit\xF3rio de patentes, Jefferson observa que “considerando o direito exclusivo de inven\xE7\xE3o como dado, n\xE3o pelo direito natural, mas para o benef\xEDcio da sociedade”, h\xE1 in\xFAmeras "dificuldades em separar com clareza as coisas que valem a pena para o p\xFAblico o embara\xE7o de uma patente exclusiva, daquelas que n\xE3o valem.” Em outras palavras, a quest\xE3o \xE9 at\xE9 que ponto a introdu\xE7\xE3o do direito de propriedade intelectual, ao inv\xE9s de promover, termina por constranger o progresso do saber, da cultura e da tecnologia. Se os crit\xE9rios para se estabelecer a propriedade s\xE3o r\xEDgidos e a dura\xE7\xE3o do direito longa demais, ent\xE3o, pode-se dificultar o aproveitamento social da cria\xE7\xE3o. Esta \xE9 a quest\xE3o fundamental discutida em toda a legisla\xE7\xE3o sobre a extens\xE3o do direito de propriedade intelectual.
Na Inglaterra, a pioneira em estabelecer uma legisla\xE7\xE3o de propriedade intelectual, o debate come\xE7ou no s\xE9culo XVIII e percorreu os tr\xEAs s\xE9culos seguintes. Em 1841, foi feita mais uma tentativa de ampliar a dura\xE7\xE3o dos direitos autorais, que, nesse per\xEDodo, cessavam depois de 20 anos da morte do autor. O famoso historiador Thomas Babington Macaulay fez uma hist\xF3rica interven\xE7\xE3o no Parlamento no qual criticava um projeto de lei que propunha ampliar o direito autoral para 60 anos ap\xF3s o falecimento do autor. Seguindo a longa tradi\xE7\xE3o anglo-sax\xE3 que legislava sobre o tema, Macaulay balanceava o direito do autor em ser remunerado e o interesse social de usufruir as cria\xE7\xF5es o quanto antes e com o menor custo. Segundo ele, o sistema de direitos autorais, tem vantagens e desvantagens e por isso n\xE3o \xE9 preto, nem branco, mas cinza. O direito exclusivo de propriedade intelectual, para ele, no fundo \xE9 ruim, porque cria um "monop\xF3lio", o que encarece o "produto" e o torna menos acessivel a todos. Mas, por outro lado, ele \xE9 bom, porque permite que o criador seja remunerado pela cria\xE7\xE3o. De um lado, temos a necessidade do monop\xF3lio na explora\xE7\xE3o comercial de um livro – de forma que apenas um editor possa lan\xE7ar e vender o livro. Mas, por outro, esse monop\xF3lio que sustenta o autor, prejudica a sociedade, encarecendo o livro e tornando sua difus\xE3o mais dif\xEDcil. Em suas palavras, "\xE9 bom que os autores sejam remunerados e a forma menos excepcional de serem remuneados \xE9 pelo monop\xF3lio. No entanto, o monop\xF3lio \xE9 ruim. Para que se consiga o que \xE9 bom, devemos nos submeter ao que \xE9 ruim."
Toda a quest\xE3o para Macaulay (e para toda a tradi\xE7\xE3o anglo-sax\xE3 dominante) era saber a medida exata em que a submiss\xE3o do bom ao ruim era proveitosa: "o ruim n\xE3o deve durar um \xFAnico dia a mais do que o necess\xE1rio para assegurar o que \xE9 bom." Mas quanto deve durar esse tempo? O projeto em tr\xE2mite no parlamento pretendia ampliar o direito de 20 para 60 anos ap\xF3s a morte do autor. Segundo Macaulay, esse per\xEDodo era muito grande e n\xE3o trazia nenhuma vantagem em rela\xE7\xE3o ao per\xEDodo vigente de 20 anos (que ele d\xE1 a entender que j\xE1 era excessivo). Se o objetivo do direito autoral \xE9 estimular a cria\xE7\xE3o, uma recompensa t\xE3o distante e ap\xF3s a morte n\xE3o parecia ser eficiente. Macauly argumenta: "Sabemos bem qu\xE3o pouco somos afetados pela perspectiva de vantagens distantes, mesmo quando s\xE3o vantagens que n\xF3s mesmos aproveitaremos. Mas uma vantagem que ser\xE1 aproveitada mais de meio s\xE9culo depois que morrermos, por pessoas que talvez n\xE3o conhecemos, que talvez n\xE3o tenham nascido, por pessoas que finalmente n\xE3o tenham conex\xE3o conosco n\xE3o parece ser motivo algum para a a\xE7\xE3o [criadora]." [5]
Com pequenas mudan\xE7as de \xEAnfase, o debate sobre a propriedade intelectual permaneceu sempre marcado pela disputa sobre o ponto de equil\xEDbrio entre o est\xEDmulo \xE0 cria\xE7\xE3o e o interesse social de usufruir o resultado da cria\xE7\xE3o. [6] A primeira lei inglesa, de 1710, dava ao criador o direito exclusivo sobre um livro por 14 anos e, se o autor ainda estivesse vivo quando o direito expirasse, poderia renovar o direito por mais 14 anos. A legisla\xE7\xE3o americana baseou-se na inglesa e nos atos de patentes e de direitos autorais de 1790 retomou os per\xEDodos de 14 anos, renov\xE1veis por outros 14. Em 1831, o Congresso americano revisou as leis de direitos autorais substituindo o per\xEDodo inicial de 14 anos, por um de 28, renov\xE1vel por mais 14. Em 1909, as leis foram novamente revisadas e o per\xEDodo foi mais uma vez ampliado para 28 anos iniciais renov\xE1veis por mais 28 anos.
Mais recentemente, por\xE9m, com o aumento do poder da ind\xFAstria cultural, a extens\xE3o do direito \xE0 propriedade intelectual ultrapassou de longe os vinte anos ap\xF3s a morte que incomodavam o historiador Thomas Macaulay em 1841. As press\xF5es come\xE7aram em 1955, quando o Congresso americano autorizou o escrit\xF3rio de patentes a desenvolver um estudo com vistas a revisar as leis de direito autoral vigentes. O relat\xF3rio final recomendava a amplia\xE7\xE3o do per\xEDodo de renova\xE7\xE3o de 28 para 48 anos. As organiza\xE7\xF5es de escritores e a ind\xFAstria cultural (principalmente as editoras), no entanto, insistiam num per\xEDodo que cobrisse a vida do autor mais 50 anos ap\xF3s a sua morte. O pretexto para esse per\xEDodo longu\xEDssimo era a "moderniza\xE7\xE3o" das leis de direitos autorais e a adequa\xE7\xE3o delas \xE0 Conven\xE7\xE3o de Berne. [7] Como a disputa n\xE3o parecia poder ser resolvida no curto prazo e os direitos estavam come\xE7ando a expirar, os lobbistas conseguiram um adiamento extraordin\xE1rio do vencimento dos direitos que estavam por expirar, do ano de 1962 para o ano de 1965, enquanto a mat\xE9ria n\xE3o era definitivamente votada no Congresso. Apesar das reiteradas obje\xE7\xF5es do Departamento de Justi\xE7a, a pol\xEAmica em torno do assunto levou a outros oito adiamentos "extraordin\xE1rios", de 1965 para 1967, de 1967 para 1968, de 1968 para 1969, de 1969 para 1970, de 1970 para 1971, de 1971 para 1972, de 1972 para 1974 e de 1974 para 1976, tudo em nome dos interesses dos detentores dos direitos (normalmente empresas e n\xE3o os descendentes dos autores) e em detrimento do dom\xEDnio p\xFAblico. Em 1976, finalmente, o Congresso aprovou uma nova e "moderna" lei de direitos autorais, atribuindo um per\xEDodo de vig\xEAncia do direito por toda a vida do autor mais 50 anos e para trabalhos encomendados por empresas, um per\xEDodo de 75 anos ap\xF3s a publica\xE7\xE3o ou 100 anos ap\xF3s a cria\xE7\xE3o, o que fosse mais curto.
Em meados dos 90, no entanto, mais uma vez uma s\xE9rie de preciosas obras em poder da ind\xFAstria cultural aproximaram-se do prazo de expira\xE7\xE3o dos direitos autorais. E, mais uma vez, a legisla\xE7\xE3o internacional "mais moderna" [8] serviu de pretexto para a amplia\xE7\xE3o dos prazos de vig\xEAncia dos direitos. Desde o final dos anos 80, empresas como a Walt Disney e a Time Warner come\xE7aram a preocupar-se com algumas de suas obras cujos direitos autorais cessariam nos primeiros anos do novo s\xE9culo. A Disney preocupava-se com o personagem Mickey Mouse que entraria em dom\xEDnio p\xFAblico em 2003, com o Pluto que entraria em 2005 e com o Pateta e o Pato Donald que entrariam em 2007 e 2009, respectivamente. J\xE1 a Warner preocupava-se com o personagem Perna Longa cujos direitos expiravam em 2015 e com uma s\xE9rie de obras cujos direitos possuia, entre elas, o filme "E o vento levou" que expirava em 2014 e uma s\xE9rie de m\xFAsicas de George Gershin, entre elas a can\xE7\xE3o "Rhapsody in Blue" e a \xF3pera "Porgy and Bess", cujos direitos expiravam em 1998 e 2010, respectivamente.
Temendo sofrer grandes preju\xEDzos pela perda dos direitos autorais, Disney, Warner e a ind\xFAstria cinematogr\xE1fica fizeram uma pesada campanha de lobby encabe\xE7ada no Congresso pelo Senador Trent Lott. O resultado foi a amplia\xE7\xE3o, em 1998, dos direitos autorais ap\xF3s a morte do autor de 50 para 70 anos, caso o direito fosse propriedade de uma pessoa e a amplia\xE7\xE3o de 75 para 95 anos caso o direito fosse propriedade de uma empresa. Com isso, al\xE9m das obras das duas empresas, ganharam mais 20 anos de explora\xE7\xE3o comercial exclusiva romances como "O grande Gatsby" de Scott Fitzgerald e "Adeus \xE0s armas" de Ernest Hemingway (cujos direitos detidos pela Viacom venceriam em 2000 e 2004, respectivamente) e m\xFAsicas como o "Concerto n\xFAmero 2 para violino" de Prokofiev e "Smokes Get in Your Eyes" de Kern e Harbach (cujos direitos, da Boosey & Hawks e da Universal, venceriam em 1999 e 2008 respectivamente).
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Voltemos agora aos fundamentos da legisla\xE7\xE3o sobre propriedade intelectual (nome gen\xE9rico que abrange os direitos autorais, de patentes e de marcas). Como vimos, desde que a legisla\xE7\xE3o foi primeiramente elaborada, ela sempre foi justificada pelo est\xEDmulo material que o criador receberia. Mas ser\xE1 que o est\xEDmulo material \xE9 o \xFAnico e o melhor est\xEDmulo que pode-se dar para o desenvolvimento do saber, da cultura e da tecnologia? Ser\xE1 que antes do advento das leis de propriedade intelectual as pessoas n\xE3o eram estimuladas a escrever livros e can\xE7\xF5es e a inventar dispositivos tecnol\xF3gicos?
Antes que Thomas Jefferson atuasse no escrit\xF3rio de patentes, Benjamin Franklin que com ele e John Adams redigiria a Declara\xE7\xE3o de Independ\xEAncia, tinha uma ativa vida de criador, tendo se tornado conhecido em todo mundo por seus experimentos e inven\xE7\xF5es. Realizador da famosa experi\xEAncia com a pipa que provava que os raios eram descargas el\xE9tricas e autor de inven\xE7\xF5es como o \xF3culos bi-focal e o p\xE1ra-raios, Benjamin Franklin sempre se recusou a patentear suas inven\xE7\xF5es. Em sua autobiografia podemos ver os motivos pelos quais se recusava a explorar comercialmente os inventos. Vale a pena citar um longo trecho:
"Tendo inventado, em 1742, um forno aberto para o melhor aquecimento de aposentos e ao mesmo tempo, economia de combust\xEDvel, na medida que o ar fresco incorporado era aquecido na entrada, fiz um presente do modelo para o Sr. Robert Grace, um dos meus amigos mais antigos, que, tendo uma fornalha de ferro, considerou a disposi\xE7\xE3o das placas desse fog\xE3o uma coisa muito \xFAtil, j\xE1 que aumetava a sua procura. Para promover essa demanda, eu escrevi e publiquei um panfleto de t\xEDtulo: 'Um relato do novo forno da Pensilv\xE2nia; no qual sua constru\xE7\xE3o e modo de opera\xE7\xE3o s\xE3o detalhadamente explicados; suas vantagens sobre qualquer outro m\xE9todo de aquecimento de aposentos s\xE3o demonstradas; e todas as obje\xE7\xF5es que foram levantadas contra o seu uso s\xE3o respondidas e esclarecidas, etc.' O panfleto teve uma boa resposta. O Governador Thomas ficou t\xE3o satisfeito com a constru\xE7\xE3o desse fog\xE3o, tal como est\xE1 descrito, que me ofereceu uma patente para a venda exclusiva deles por um per\xEDodo de anos. Eu recusei, no entanto, baseado num princ\xEDpio que sempre pesou para mim em tais situa\xE7\xF5es: uma vez que tiramos grandes vantagens das inven\xE7\xF5es alheias, devemos ficar felizes de ter uma oportunidade de servir aos outros com quaisquer de nossas pr\xF3prias inven\xE7\xF5es; e isso devemos fazer de forma gratuita e generosa." [9]
O fato de que homens talentosos como Benjamin Franklin nunca se sentiram estimulados pela perspectiva de retorno material por suas descobertas sempre foi levado em conta no debate sobre os direitos de propriedade intelectual. O historiador Thomas Macauly, por exemplo, que defendia os direitos segundo os princ\xEDpios cl\xE1ssicos era obrigado a fazer ressalvas quando mencionava a contribui\xE7\xE3o que os ricos davam para a cria\xE7\xE3o de obras e inventos: "Os ricos e os nobres n\xE3o s\xE3o levados ao exerc\xEDcio intelectual pela necessidade. Eles podem ser movidos para a pr\xE1tica intelectual pelo desejo de se distinguirem ou pelo desejo de auxiliar a comunidade." Mas ser\xE1 que a vaidade de produzir uma obra \xFAnica ou a generosidade de produzir um bem para a comunidade s\xE3o virtudes exclusivas dos ricos? Boa parte do desenvolvimento art\xEDstico parece dizer que n\xE3o. Pintores importantes como Rembrandt, Van Gogh e Gauguin morreram na pobreza e sem reconhecimento, assim como m\xFAsicos como Mozart e Schubert e um escritor como Kafka, embora nunca tenha sido verdadeiramente pobre, n\xE3o chegou a ser reconhecido em vida. Ser\xE1 que a falta de perspectiva de recompensa material em algum momento impediu que eles se dedicassem \xE0 m\xFAsica, \xE0 pintura ou \xE0 literatura? Ser\xE1 que n\xE3o tinham outro tipo de motiva\xE7\xE3o – a expectativa do reconhecimento p\xF3stumo, o simples amor pela sua arte?
A quest\xE3o da propriedade intelectual, quando pensada fora da imagem tradicional da balan\xE7a que op\xF5e est\xEDmulo material ao criador e interesse social em usufruir a obra ou inven\xE7\xE3o, leva a muitas outras ordens de considera\xE7\xE3o. Ser\xE1 que os artistas devem ser remunerados pela cria\xE7\xE3o das obras? Poderiam eles contribuir para esse bem coletivo e an\xF4nimo que \xE9 a cultura humana sem ter usufru\xEDdo e incorporado antes a rica e generosa contribui\xE7\xE3o dos outros artistas, contempor\xE2neos e do passado? E se achamos que \xE9 preciso um est\xEDmulo material al\xE9m da vaidade pessoal e da vontade de contribuir para o bem comum, n\xE3o seria poss\xEDvel ent\xE3o desenvolver um sistema p\xFAblico de recompensa para os inventores, como sugere o economista Stephen Marglin? [10] Um sistema que premiasse as grandes id\xE9ias – por meio de concursos p\xFAblicos, por exemplo – mas que n\xE3o limitasse o uso dessas id\xE9ias a um empreendor individual?
Na verdade, quest\xF5es como essas – se deve-se ou n\xE3o recompensar materialmente a cria\xE7\xE3o e se a melhor forma de faz\xEA-lo \xE9 atrav\xE9s da explora\xE7\xE3o comercial privada – s\xE3o quest\xF5es \xE0s quais n\xE3o cabem respostas te\xF3ricas. S\xE3o os movimentos sociais que est\xE3o buscando alternativas concretas \xE0 propriedade intelectual que dever\xE3o oferecer as respostas – e, de fato, j\xE1 est\xE3o a fazer.
Desde que obras e patentes passaram a ser registradas, os direitos sobre elas passaram a ser violados. Uma parte dessa viola\xE7\xE3o dos direitos \xE9, sem d\xFAvida, mero crime. No entanto, \xE0 parte a viola\xE7\xE3o marginal e clandestina dos direitos de propriedade intelectual (que pode ser muito grande, at\xE9 mesmo dominante), sempre houve um f\xEAnomeno diferente de desobedi\xEAncia civil das leis que instauravam esses direitos. A desobedi\xEAncia civil, como se sabe, \xE9 muito diferente do crime. O crime \xE9 uma viola\xE7\xE3o de lei clandestina, feita \xE0s escondidas e com o entendimento de que a lei que se viola \xE9 leg\xEDtima. A desobedi\xEAncia civil, por sua vez, \xE9 uma viola\xE7\xE3o p\xFAblica das leis motivada por seu car\xE1ter ileg\xEDtimo. A desobedi\xEAncia civil se faz abertamente e ela n\xE3o reconhece que a lei que est\xE1 sendo infringida seja justa.
Desde que os direitos de propriedade intelectual foram instaurados, houve uma resist\xEAncia aberta \xE0 sua aplica\xE7\xE3o no setor privado e comunit\xE1rio. A enorme dificuldade de fiscaliza\xE7\xE3o fez com que essa desobedi\xEAncia civil tivesse um car\xE1ter passivo, que n\xE3o se engajava na contesta\xE7\xE3o das leis de propriedade intelectual, mas simplesmente as ignorava. As pessoas sabiam que os direitos existiam e deviam ser respeitados e simplesmente passavam por cima deles porque achavam que eram absurdos. Evidentemente n\xE3o estou me referindo \xE0 pirataria comercial que era, sem exagero, apenas crime. A ind\xFAstria pirata reconhecia a legisla\xE7\xE3o vigente e fugia dela de forma clandestina, sem contest\xE1-la. Ali\xE1s, todo industrial pirata n\xE3o podia aspirar a coisa maior do que transformar sua ind\xFAstria pirata numa ind\xFAstria legal e passar a utilizar assim os direitos autorais a seu favor.
Mas coisa muito diferente eram os usu\xE1rios que reproduziam a obra para fins n\xE3o comerciais – "para a sua instru\xE7\xE3o m\xFAtua e a melhoria das condi\xE7\xF5es", como dizia Jefferson. Quando aparelhos de reprodu\xE7\xE3o se popularizaram (o mime\xF3grafo, a fita cassete, a copiadora e em seguida a reprodu\xE7\xE3o digital por computador), as pessoas automaticamente come\xE7aram a reproduzir livros, can\xE7\xF5es, fotos e v\xEDdeos, para si e seus amigos, sem pagar os devidos direitos, assim como, antes, j\xE1 encenavam pe\xE7as nas escolas e nos bairros e cantavam e tocavam can\xE7\xF5es para os amigos e para a comunidade tamb\xE9m sem pagar os direitos. Por mais que a campanha "c\xEDvica" promovida pela ind\xFAstria e pelo governo lembrasse a todos a import\xE2ncia de "pagar os direitos", as pessoas desconfiavam, frequentemente de forma intuitiva, que aquele pagamento n\xE3o fazia sentido pois quem apenas usufria desse bem coletivo que \xE9 a cultura humana n\xE3o podia estar roubando nada de ningu\xE9m. Como Benjamin Frankliln havia escrito na sua autobiografia, na produ\xE7\xE3o da cultura (e do saber e da tecnologia), nada pode ser feito sem que se tenha antes aprendido com a imensa comunidade dos outros produtores contempor\xE2neos e dos que nos precederam. E da mesma forma que usufruimos e aprendemos gratuitamente com todos eles – de maneira t\xE3o ampla que sequer podemos nome\xE1-los individualmente – devemos disponibilizar nossa contribui\xE7\xE3o para a forma\xE7\xE3o das novas gera\xE7\xF5es.
Embora nem a ind\xFAstria, nem o governo tenham conseguido coibir de forma eficiente o uso privado e comunit\xE1rio das obras sem o pagamento dos direitos autorais correspondentes, [11] eles fizeram o poss\xEDvel e o imposs\xEDvel para obstruir a difus\xE3o de tecnologias de reprodu\xE7\xE3o dom\xE9stica. [12] Foi assim, em 1964, quando a Phillips lan\xE7ou o cassete de a\xFAdio e a ind\xFAstria fonogr\xE1fica primeiro tentou impedir o lan\xE7amento do produto e depois fez lobby no Congresso para que fosse criado um imposto sobre os cassetes virgens para compensar as "perdas" da ind\xFAstria resultantes das c\xF3pias que os usu\xE1rios fariam de seus LPs para cassetes. O mesmo aconteceu em 1976 quando a Sony lan\xE7ou o videocassete formato Betamax. A Universal Studios e a Walt Disney abriram um processo contra a Sony acusando-a de incitar a viola\xE7\xE3o dos direitos autorais e, depois de uma batalha judicial que durou oito anos, a Suprema Corte finalmente reconheceu que a pessoa que gravava o \xFAltimo cap\xEDtulo da novela n\xE3o praticava pirataria. Depois, em 1987, chegou ao mercado um novo dispositivo de reprodu\xE7\xE3o: a fita de \xE1udio digital, que permitia grava\xE7\xF5es digitais fi\xE9is sem recurso \xE0 compress\xE3o de dados (como acontece com o CD). Embora, de in\xEDcio, n\xE3o tenha tido boa aceita\xE7\xE3o no mercado e, posteriormente, tenha apenas conquistado o mercado dos profissionais de \xE1udio, a fita de \xE1udio digital fez com que a ind\xFAstria fonogr\xE1fica entrasse em desespero. Em fun\xE7\xE3o de suas press\xF5es foram propostas diversas leis e emendas no Congresso americano que buscavam limitar a capacidade de reprodu\xE7\xE3o dos aparelhos e taxar as fitas virgens. Depois de muitas disputas, o presidente Bush (pai), ratificou, em 1992, no \xFAltimo dia do seu mandato, o "Ato sobre a grava\xE7\xE3o dom\xE9stica de \xE1udio" que tinha sido aprovado antes, no Congresso, por voto oral (de forma que n\xE3o se t\xEAm registros sobre quem votou a favor e quem votou contra). O Ato, entre outras medidas, obrigava todos os aparelhos de \xE1udio digital a ter um dispositivo que impedia a c\xF3pia em s\xE9rie de uma fita (ou seja, depois de feita uma c\xF3pia, n\xE3o se podia fazer outra c\xF3pia a partir dela) e institu\xEDa um imposto sobre os aparelhos (2% sobre o pre\xE7o de venda) e sobre as fitas virgens (3% do pre\xE7o de venda). O imposto, depois de recolhido, era distribu\xEDdo da seguinte maneira: 57% para as empresas (gravadoras e editoras musicais) e apenas 43% para os autores. Seria este o tipo de incentivo ao autor que norteara o pensamento de Thomas Jefferson e dos fundadores da rep\xFAblica americana quando conceberam as leis e institui\xE7\xF5es que regiam os direitos autorais?
O interesse crescente das grandes empresas na manuten\xE7\xE3o e amplia\xE7\xE3o dos direitos autorais se deve \xE0 forma espec\xEDfica como eles foram estabelecidos. Quando a propriedade intelectual foi concebida no final do s\xE9culo XVIII, sua finalidade era conceder ao autor um monop\xF3lio sobre a explora\xE7\xE3o comercial da obra, de forma que quem quisesse ler o livro que tinha escrito ou escutar a m\xFAsica que tinha composto, teria que pagar a ele. Ele poderia exigir esse pagamento porque tinha o direito exclusivo de comercializar a obra, sem concorr\xEAncia. Mas \xE9 \xF3bvio que os autores n\xE3o podiam fazer isso. A n\xE3o ser que o autor de um livro se tornasse tamb\xE9m editor, ele n\xE3o poderia diretamente explorar a obra. Ele teria que recorrer a um editor, a um capitalista, que iria explorar a obra por ele e tirar parte dos rendimentos para si pr\xF3prio, como compensa\xE7\xE3o pelo investimento. Dessa forma, o autor cedia ao capitalista o direito de explora\xE7\xE3o exclusiva, sem concorr\xEAncia, que tinha recebido do estado e dividia com ele os dividendos da cria\xE7\xE3o. Mas, nessa rela\xE7\xE3o, o elo fraco era o autor. A distribui\xE7\xE3o de livros, discos e outros produtos sempre foi relativamente cara e havia muitos autores para poucas empresas interessadas em lan\xE7\xE1-los. Isso fez com que as empresas tivessem um poder muito grande de determinar as condi\xE7\xF5es dos contratos e conseguissem assim uma grande participa\xE7\xE3o nos dividendos advindos da explora\xE7\xE3o comercial da obra. Era evidente que se o objetivo era estimular o autor e n\xE3o beneficiar as grandes empresas, n\xE3o havia porque o monop\xF3lio de explora\xE7\xE3o comercial ser cedido \xE0 empresa. A melhor forma de beneficiar o autor teria sido ele manter para si o monop\xF3lio de explora\xE7\xE3o e ceder para diferentes empresas concorrentes o direito n\xE3o exclusivo de publica\xE7\xE3o da obra. Assim, com a concorr\xEAncia entre as empresas, a obra seria barateada e melhor difundida e os dividendos se concentrariam com os autores que poderiam disputar licen\xE7as de explora\xE7\xE3o mais vantajosas. Com o monop\xF3lio de explora\xE7\xE3o comercial oferecido pelos direitos autorais sendo cedido integralmente para as empresas, n\xE3o eram mais os autores que se beneficiavam primariamente, mas as grandes empresas da ind\xFAstria cultural.
\xC0 medida que o poder da ind\xFAstria cutural crescia, tamb\xE9m cresciam as campanhas contra as viola\xE7\xF5es dos direitos autorais. Essa press\xE3o fez, de certa forma, com que aquela desobedi\xEAncia civil passiva que aparecia quando as pessoas simplesmente ignoravam as leis, se tornasse mais consciente e, assim, movimentos de oposi\xE7\xE3o declarada aos direitos autorais come\xE7assem a surgir. Enquanto pequenos grupos de hackers radicais come\xE7aram campanhas de viola\xE7\xE3o deliberada dos direitos autorais, distribuindo m\xFAsica, v\xEDdeos, textos e programas de gra\xE7a na internet sob o lema "a informa\xE7\xE3o quer ser livre", grandes movimentos espont\xE2neos menos conscientes e menos radicais tomavam conta de um p\xFAblico mais amplo. Entre esses movimentos, o de maior impacto, sem d\xFAvida, foi a forma\xE7\xE3o da comunidade Napster.
O Napster era um programa "ponto a ponto" desenvolvido em 1999 pelo estudante Shawn Fanning que buscava superar a dificuldade de encontrar m\xFAsica em formato MP3 na internet. At\xE9 ent\xE3o, as m\xFAsicas em formato MP3 eram disponibilizadas principalmente por meio de servidores FTP que, em geral, ficavam no ar apenas at\xE9 uma grande gravadora encontrar o servidor e enviar uma mensagem amea\xE7ando deflagrar um processo judicial. Para superar essa dificuldade, Fanning projetou um sistema ponto a ponto, em que usu\xE1rios poderiam acessar arquivos em pastas compartilhadas em computadores de outros usu\xE1rios atrav\xE9s de links recolhidos por um servidor. Assim, suprimia-se a media\xE7\xE3o dos servidores que armazenavam os arquivos. Os arquivos de m\xFAsica ficavam no computador de cada usu\xE1rio e o servidor do Napster apenas disponibilizava os links de acesso a eles. O Napster trazia uma concep\xE7\xE3o inteligente que descentralizava o armazenamento dos arquivos. Com isso, criava uma situa\xE7\xE3o legal amb\xEDgua. N\xE3o se tratava mais de um grande servidor distribuindo m\xFAsica, mas de uma rede de usu\xE1rios trocando generosamente arquivos de m\xFAsica entre si. De certa forma, nada distinguia a troca de arquivos na rede Napster do h\xE1bito que as pessoas sempre tiveram de gravar fitas cassetes para os amigos. A diferen\xE7a era que isso era feito numa rede de cinco milh\xF5es de usu\xE1rios – e foi com base nessa grande dimens\xE3o que a RIAA, a associa\xE7\xE3o das gravadoras americanas, sustentou um processo contra o Napster.
Um dos fatos mais relevantes do fen\xF4meno Napster foi a constitui\xE7\xE3o da comunidade Napster. Na aus\xEAncia de um servidor que armazenasse os arquivos, o funcionamento da rede Napster exigia uma comunidade de usu\xE1rios que compartilhasse suas m\xFAsicas de maneira generosa. Se todos estivessem na rede apenas para baixar m\xFAsicas e se recusassem a disponibilizar os seus pr\xF3prios arquivos, a rede fracassaria. Mas o not\xE1vel \xE9 que, a despeito de n\xE3o ganharem nada e, pelo contr\xE1rio, consumirem uma fatia \xE0s vezes consider\xE1vel da sua banda de acesso, milh\xF5es de pessoas disponibilizaram m\xFAsicas para outras pessoas que n\xE3o conheciam, formando uma verdadeira comunidade virtual.
O fen\xF4meno Napster deflagrou grandes discuss\xF5es p\xFAblicas sobre os direitos autorais entre 1999 e 2001, quando o Napster perdeu o processo na justi\xE7a. Por um lado, essa discuss\xE3o evidenciou o car\xE1ter de desobedi\xEAncia civil que envolvia a utiliza\xE7\xE3o do programa. Embora o estatuto legal do Napster estivesse em julgamento, na grande imprensa e na opini\xE3o p\xFAblica formada por ela, a mensagem un\xEDssona era a das grandes gravadoras e dos grandes artistas que condenavam o Napster e acusavam-no de roubo, pirataria e de tirar o sustento de milhares de artistas esfor\xE7ados. Apesar dessa massiva campanha de propaganda dos \xF3rg\xE3os de imprensa (muitos dos quais ligados a grupos empresariais que tamb\xE9m controlam grandes gravadoras), as pessoas n\xE3o paravam de aderir \xE0 rede Napster numa demonstra\xE7\xE3o aberta de que n\xE3o consideravam leg\xEDtima uma lei que impedia a livre troca dos bens culturais.
A discuss\xE3o sobre o Napster, por outro lado, gerou um debate sobre a remunera\xE7\xE3o dos artistas e sobre as dificuldades de se compatibilizar a livre troca de informa\xE7\xF5es com o sustento de uma classe de criadores profissionais remunerados. N\xE3o apenas as grandes gravadoras se opuseram ao Napster, mas uma s\xE9rie de artistas estabelecidos, do Metallica a Lou Reed [13], argumentaram que a livre troca de m\xFAsica sem o pagamento dos direitos autorais retirava sua fonte de sustento. E embora esse debate tenha sido muito desequilibrado – porque sempre estava ausente um verdadeiro opositor dos direitos autorais – ele teve o m\xE9rito de p\xF4r em evid\xEAncia o objetivo prim\xE1rio da institui\xE7\xE3o dos direitos de autor.
Enquanto em alguns f\xF3runs alternativos a possibilidade de um mundo sem direitos autorais era discutida um tanto teoricamente, um movimento iniciado por programadores come\xE7ava a mostrar a viabilidade efetiva desse projeto. N\xE3o se tratava de pensar como poderia ser uma sociedade sem direitos autorais, mas de come\xE7ar a p\xF4-la em pr\xE1tica.
Embora muitas hist\xF3rias possam ser contatadas sobre a origem desse movimento, podemos dizer que uma das suas principais manifesta\xE7\xF5es teve origem no in\xEDcio dos anos 80 quando o programador Richard Stallman, do laborat\xF3rio de intelig\xEAncia artificial do MIT, abandonou seu emprego por se sentir constrangido pelas restri\xE7\xF5es de direitos autorais que impediam-no de aperfei\xE7oar programas comprados de empresas. Stallman sentia que as licen\xE7as de direitos autorais que negavam acesso ao c\xF3digo fonte dos programas (para impedir c\xF3pias ilegais) restringiam liberdades que os programadores haviam usufru\xEDdo antes do mundo da inform\xE1tica ser dominado pelas grandes corpora\xE7\xF5es – a liberdade de executar os programas sem restri\xE7\xF5es, a liberdade de conhecer e modificar os programas e a liberdade de redistribuir esses programas na forma original ou modificada entre os amigos e a comunidade. Por esse motivo, Stallman resolveu iniciar um movimento que produzisse programas livres, programas que resguardassem aquelas liberdades que o mundo dos programadores conhecia antes das restri\xE7\xF5es empresariais. Foi com essas id\xE9ias que Stallman come\xE7ou a conceber o sistema operacional GNU que depois de ter o kernel desenvolvido por Linus Torvalds ficou conhecido como Linux. [14]
O significado do desenvolvimento e principalmente da difus\xE3o do sistema operacional GNU/ Linux n\xE3o \xE9 apenas o de romper o monop\xF3lio do sistema Windows, da Microsoft, mas, principalmente, de faz\xEA-lo por meio de um empreendimento em grande medida coletivo e volunt\xE1rio. Tirando alguns poucos funcion\xE1rios que recebiam sal\xE1rios relativamente baixos da funda\xE7\xE3o de Stallman (a Funda\xE7\xE3o para o Software Livre), a maioria dos desenvolvedores do GNU/Linux eram programadores ligados a empresas e universidades que davam sua contribui\xE7\xE3o voluntariamente sem esperar qualquer outro tipo de retorno que n\xE3o o reconhecimento p\xFAblico por um trabalho bem feito. Como Benjamin Franklin, esses programadores, entre os quais encontravam-se alguns dos melhores em sua \xE1rea, doavam seu trabalho de forma "gratuita e generosa" esperando contribuir para "o bem comum" e "a melhoria das condi\xE7\xF5es". E apenas com esse trabalho volunt\xE1rio e generoso (que nos \xFAltimos anos passou a ser bem explorado por grandes empresas) conseguiu-se montar uma comunidade estimada hoje em mais de 15 milh\xF5es de usu\xE1rios.
O sucesso da difus\xE3o desse sistema operacional e de centenas de outros programas livres deveu-se ao fato de que esses programas garantiam a perman\xEAncia de suas caracter\xEDsticas "livres". Quando Stallman iniciou o movimento pelo sofware livre, ele concebeu um tipo de licen\xE7a de direitos autorais que assegurava a manuten\xE7\xE3o das liberdades em vers\xF5es reproduzidas e melhoradas dos programas. A esse tipo de licen\xE7a, Stallman deu o nome de "copyleft" (esquerdo autoral), num trocadilho com "copyright" (direito autoral) [15]. Ao inv\xE9s de simplesmente abrir m\xE3o dos direitos autorais, o que permitiria que empresas se apropriassem de um programa livre, modificando-o e redistribuindo-o de forma n\xE3o livre, Stallman pensou num mecanismo de constrangimento que assegurasse a manuten\xE7\xE3o da liberdade que o programador havia dado ao programa. O mecanismo pensado era reafirmar os direitos autorais abrindo m\xE3o da exclusividade de distribui\xE7\xE3o e altera\xE7\xE3o desde que o uso subsequente n\xE3o restringisse aquelas liberdades. Em outras palavras, a pessoa que recebia um programa livre, recebia esse programa com a condi\xE7\xE3o de que se o copiasse ou o aprimorasse, mantivesse as caracter\xEDsticas livres que tinha recebido: o direito de rodar livremente, de modificar livremente e de copiar livremente. Com isso, os programas livres, frutos de esfor\xE7os coletivos volunt\xE1rios, ganhavam uma licen\xE7a que garantia que mesmo que as empresas quisessem us\xE1-los e distribu\xED-los, o fizessem de forma a manter suas liberdades iniciais.
O sucesso do sistema operacional GNU/Linux e do movimento do software livre trouxe um exemplo concreto da possibilidade de se constituir um sistema de cria\xE7\xE3o onde a remunera\xE7\xE3o n\xE3o fosse a forma principal de est\xEDmulo e onde o interesse coletivo de usufrir com liberdade a cultura humana fosse mais importante do que a explora\xE7\xE3o comercial das id\xE9ias. Claro que a obje\xE7\xE3o de que os autores ficariam desprovidos de sustento e teriam que sujar as m\xE3os com trabalhos n\xE3o puramente criativos permaneceu. Mas o exemplo de Richard Stallman que trocou o papel de programador que cedo ou tarde seria for\xE7ado a submeter-se \xE0s empresas pelo papel de conferencista e acessor t\xE9cnico independente ou ainda, o exemplo de George Gershwin, que antes de garantir o sustento de sua fam\xEDlia por tr\xEAs gera\xE7\xF5es, ganhou a vida executando, como pianista e regente, suas pr\xF3prias composi\xE7\xF5es, mostram que uma vida sem direitos autorais \xE9 poss\xEDvel.
Hoje o movimento pelo copyleft, pela livre circula\xE7\xE3o da cultura e do saber ampliou-se muito al\xE9m do universo dos programadores. O conceito de copyleft \xE9 aplicado na produ\xE7\xE3o liter\xE1ria, cient\xEDfica, art\xEDstica e jornal\xEDstica. H\xE1 ainda muito trabalho de divulga\xE7\xE3o e esclarecimento a ser feito e \xE9 preciso que discutamos politicamente os pr\xF3s e os contras dos diferentes tipos de licen\xE7a. Precisamos discutir se queremos conciliar a explora\xE7\xE3o comercial com a utiliza\xE7\xE3o n\xE3o comercial livre ou se devemos simplesmente nos livrar dos mecanismos de difus\xE3o comercial de uma vez por todas; precisamos tamb\xE9m discutir quest\xF5es relativas \xE0 autoria e \xE0 integridade da obra, principalmente numa \xE9poca em que o sampleamento e a colagem constituem formas de manifesta\xE7\xE3o art\xEDstica importantes; temos, finalmente, que discutir as in\xFAmeras peculiaridades de cada tipo de produ\xE7\xE3o adequando a licen\xE7a ao que estamos fazendo (a \xEAnfase na possibilidade de modifica\xE7\xE3o de um programa de computador tem pouco cabimento quando aplicado \xE0 produ\xE7\xE3o cient\xEDfica, etc.). Esse trabalho n\xE3o \xE9 o trabalho de imaginar um mundo poss\xEDvel, mas de passar a constru\xED-lo, aqui e agora.
NOTAS
[1]
http://www.midiaindependente.org
[2] Direitos de propriedade intelectual \xE9 um termo gen\xE9rico para designar os direitos autorais, de patentes e de marcas. Neste artigo, falo um pouco dos direitos sobre patentes, mas, sobretudo, dos direitos autorais. Para a quest\xE3o das marcas veja Naomi Klein, Sem Logo (Rio de Janeiro, Record, 2002).
[3] Carta de Thomas Jefferson para Isaac
McPherson de 13 de agosto de 1813 (The Writings of Thomas Jefferson. Washington, Thomas Jefferson Memorial Association, 1905, vol. 13, pp. 333-335). Essa passagem \xE9 muito citada como argumento contr\xE1rio \xE0 propriedade intelectual, mas a inten\xE7\xE3o de Jefferson \xE9 apenas mostrar que a propriedade intelectual n\xE3o \xE9 natural – o que n\xE3o impede (e ele \xE9 um defensor disso) que ela seja institu\xEDda pela sociedade.
[4] Cl\xE1usula de direitos autorais e de patentes da Constitui\xE7\xE3o Americana, art. I, \xA7 8, cl. 8.
[5] Thomas Babington Macaulay, "A Speech Delivered in the House of Commons on the 5th of February 1841" In: The Miscellaneous Writtings and Speeches of Lord Macaulay. Londres, Longmans, Green, Reader & Dyer, 1880, vol. IV.
[6] Apesar disso, houve v\xE1rias tentativas de introduzir o direito natural no tratamento da propriedade intelectual. Se a doutrina do direito natural vingasse, o direito de explora\xE7\xE3o comercial exclusiva perderia o car\xE1ter de concess\xE3o tempor\xE1ria justificada pelo est\xEDmulo \xE0 cria\xE7\xE3o e se transformaria num direito permanente e heredit\xE1rio. Isso levaria num curto prazo \xE0 completa mercantiliza\xE7\xE3o de todos os bens culturais. Felizmente isso n\xE3o foi adotado em nenhum lugar. Na Fran\xE7a, depois da revolu\xE7\xE3o, a constitui\xE7\xE3o de 1791 consagrou o direito "natural" \xE0 propriedade intelectual, mas a regulamenta\xE7\xE3o desse direito sempre restringiu o monop\xF3lio a um per\xEDodo de explora\xE7\xE3o determinado.
[7] Evid\xEAncia de que adequa\xE7\xE3o \xE0 Conven\xE7\xE3o de Berne era apenas um pretexto \xE9 dada pelo fato de que apesar do per\xEDodo da vida do autor mais 50 anos ter sido adotado nos EUA em 1976, o pa\xEDs n\xE3o aderiu \xE0 conven\xE7\xE3o at\xE9 1989 porque n\xE3o abriu m\xE3o de outros \xEDtens "menores" como a exig\xEAncia de registro. Para todo esse levantamento, veja Tyler T. Ochoa "Patent and Copyright Term Extension and the Constitution: a Historical Perspective" Copyright Society of the USA (mar\xE7o de 2002): 19-125.
[8] A Uni\xE3o Europ\xE9ia havia estendido o prazo de validade dos direitos autorais para a dura\xE7\xE3o da vida do autor mais 70 anos.
[9] The Autobiography of Benjamin Franklin. Nova Iorque, P. F. Collier & Son, 1909, p. 112.
10] Stephen Marglin "Origem e fun\xE7\xF5es do parcelamento de tarefas" In: A. Gorz. Cr\xEDtica da divis\xE3o do trabalho. S\xE3o Paulo, Martins Fontes, 1989, pp. 37-77.
[11] Imagine a Warner exigindo das milh\xF5es de pessoas que fazem anivers\xE1rio todos os dias pagamento pelos direitos de "Parab\xE9ns para voc\xEA" (sim, h\xE1 direito autoral para "Parab\xE9ns para voc\xEA" e ele pertence ao grupo AOL Time Warner que recebe como pagamento pelos direitos aproximadamente dois milh\xF5es de d\xF3lares todo ano).
[12] Muito antes das disputas recentes envolvendo o cassete de \xE1udio e o v\xEDdeocassete, pode-se lembrar o processo que a editora musical White-Smith moveu contra a Apollo Co. em 1908 pela venda de "rolos de piano", cartuchos cil\xEDndricos com papel perfurado que eram utilizados por um dispositivo que permitia aos pianos tocarem m\xFAsicas automaticamente.
[13] Quem se debru\xE7ar sobre a hist\xF3ria da disputa sobre os direitos autorais vai sofrer desilus\xF5es com grandes artistas que muitas vezes puseram mesquinhos interesses privados acima dos interesses p\xFAblicos. N\xE3o \xE9 apenas o caso do Metallica que identificou os interesses dos novos artistas com o das grandes empresas, lembrando que "apesar de todos n\xF3s gostarmos de criticar as gravadoras grandes e m\xE1s, elas sempre reinvestiram seus lucros na exposi\xE7\xE3o de novas bandas para o p\xFAblico” e que, “sem essa exposi\xE7\xE3o, muitos f\xE3s nunca teriam a oportunidade de conhecer hoje as bandas de amanh\xE3" (Lars Ulrich, baterista do Metallica, em declara\xE7\xE3o sobre o Napster). Numa audi\xEAncia no congresso americano, buscando revisar as leis de direito autoral em 1906, o escritor Mark Twain, autor dos cl\xE1ssicos "As aventuras de Tom Sawyer" e "Huckleberry Finn" simplesmente defendeu o direito natural \xE0 propriedade intelectual. Ap\xF3s ser informado que tal doutrina era inconstitucional, passou a defender a extens\xE3o do direito para o maior prazo poss\xEDvel. Seus argumentos? "Eu gosto da extens\xE3o [do direito de propriedade intelectual] para cinquenta anos porque isso beneficia minhas duas filhas que n\xE3o t\xEAm compet\xEAncia para ganhar a vida como eu ganho pois eu as eduquei como jovens senhoras que n\xE3o sabem e n\xE3o conseguem fazer nada." (E. F. Brylawsky e A. A. Goldman, Legislative History of the 1909 Copyright Act. Littleton, Fred B. Rothman, 1976, p. 117 citado por T. T. Ochoa, no artigo mencionado, p. 36)
[14] Richard Stallman "The GNU Operating System and the Free Software Movement" In: Mark Stone, Sam Ockman e Chris
DiBona (eds.) Open Sources: Voices from the Open Source Revolution. Sebastopol, O'Reilly, 1999.
[15] O termo "copyleft" partiu de um amigo de Stallman que, brincando, escreveu certa vez numa carta: "Copyleft: all rights reversed" (esquerdos autorais: todos os direitos invertidos) em alus\xE3o \xE0 nota comum: "Copyright: all rights reserved" (direitos autorais: todos os direitos reservados). Veja o artigo de Stallman citado acima.
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ElisaX - 13 Jul 2009